domingo, 29 de junho de 2008

O sertão tá dentro da gente

O Sertão é sem fim; o Sertão está em toda parte; o Sertão tá dentro da gente(...)

Foto: Museu da Língua Portuguesa

O sertão é do tamanho do mundo(...)

Sertão é isso, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada(...)

O sertão não tem janelas nem portas (...)

O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca(...)





sábado, 28 de junho de 2008

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A menina de lá

"Anjo"- Djanira Motta

Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.

Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." – dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - "Tatu não vê a lua..." – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.

Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – "Nhinhinha, que é que você está fazendo?" – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: - "Eu... to-u... fa-a-zendo". Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?

Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: - "Menino pidão... Menino pidão..." Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: - "Menina grande... Menina grande..." Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: - "Deixa... Deixa..." – suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – "Cheiinhas!" – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – "A gente não vê quando o vento se acaba..." Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..." Não, dissera só: - "... altura de urubu não ir." O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-mever..." Suspirava, depois: - "Eu quero ir para lá." – Aonde? – "Não sei" Aí, observou: - "O passarinho desapareceu de cantar..." De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A Avezinha." De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: - "Eeu? Tou fazendo saudade." Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: - "Vou visitar eles..." Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: - "Ele te xurugou?" Nunca mais vi Nhinhinha.

Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.
Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: - "Eu queria o sapo vir aqui" Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - "Está trabalhando um feitiço..." Os outros se pasmaram; silenciaram demais.

Dias depois, com o mesmo sossego: - "Eu queria uma pamonhinha de goiabada" – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – "Deixa... Deixa..." – não a podiam despersuadir. Mas veio vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.

Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.

O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – "Mas, não pode, ué..." – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leito, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – "Deixa... Deixa..." – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.

Daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca lhe vira, pular e correr por casa e quintal.

- "Adivinhou passarinho verde?" – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.

E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.

Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – "Menina grande... Menina grande..." – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.

Agora, precisavam de mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites de verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?

O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer...

A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.


in Primeiras Estórias, João Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira

http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/meninadela

Linguagem que inspirou Guimarães Rosa continua viva em Cordisburgo

A CANÇÃO DE SIRUIZ

“Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti — água azulada,
carnaúba — sal do chão"...


Siruiz é um jagunço-poeta. A canção de Siruiz é uma toada bela, porém muito estranha, que Riobaldo ouviu, antes de fugir da fazenda do padrinho (na verdade: seu pai), quando alguém falou: "Siruiz, cadê a moça virgem?" Se "alembra" que ele respondeu entoando uma balada?

Era a canção de Siruiz. Poema épico lírico sobre um encontro inevitável e fatal, que emocionou Riobaldo ("Aquilo molhou minha idéia") e virou um símbolo de criação poética: "O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isto tem?" (...)

A canção de Siruiz é uma profecia da sina de Riobaldo. A melodia original se perdeu. Temos a composição de Luiz Henrique Xavier de uma "canção boiadeira", adaptada por Antônio Candido(...)

Cordisburgo celebra centenário de Guimarães Rosa


Para comemorar os 100 anos de João Guimarães Rosa (1908-1967), o município de Cordisburgo, cidade natal do escritor em Minas Gerais, receberá visitantes de todo o Brasil com uma programação especial nesta sexta-feira, dia 27 de junho.

O selo que comemora centenário de Guimarães Rosa será lançado pelos Correios no evento
O Museu Casa Guimarães Rosa --instituição vinculada à Superintendência de Museus da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, realizará diferentes eventos em pontos estratégicos da cidade, durante todo o dia, para celebrar o escritor.

As comemorações tiveram início às 9h, com a celebração de uma missa em homenagem aos cem anos de nascimento de Guimarães Rosa, no Santuário do Sagrado Coração de Jesus.

A festa contará com o lançamento do livro "Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai", de Vilma Guimarães Rosa Reeves, uma apresentação da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e a abertura da exposição "Cem anos de Rosa".

A data também irá marcar o lançamento nacional do selo comemorativo do centenário pelos Correios. Os eventos são abertos ao público e terão entrada gratuita.
A festa conta com o apoio da Prefeitura de Cordisburgo, da Academia Cordisburguense de Letras e da Fundação Clóvis Salgado.




quinta-feira, 26 de junho de 2008

O escritor faria cem anos! Joana Garfunkel comenta Grande Sertão: Veredas

O sertão cantado de Guimarães Rosa

“O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca.” Essa famosa frase de Riobaldo — personagem criado pelo escritor Guimarães Rosa para Grande Sertão: Veredas — está até nos sonhos de Joana Garfunkel. Junto com seu pai, Jean, ela se encanta e canta trechos da obra e composições nela inspiradas para o projeto Canto livro, que é apresentado em livrarias, eventos culturais, escolas e teatros. Veja como o livro de Rosa influenciou o trabalho de Joana e suas dicas para lê-lo e se encantar com o sertão mineiro.

Leia na íntegra:
http://www.educacional.com.br/entrevistas/ent_educ_texto.asp?Id=239613

SAGARANA - JOÃO GUIMARÃES ROSA

sábado, 21 de junho de 2008

A terceira margem do rio

João Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdia nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns 20. ou 30 anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por ai se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai enealcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou a olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos se reuniram, tornaram juntamente conselho. Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda – descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viaja s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais carreto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se remava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos afora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.

Fonte: http://www.lumiarte.com/luardeoutono/margemdorio.html

sábado, 14 de junho de 2008

A terceira margem do rio - Milton Nascimento e Caetano Veloso

A terceira margem do rio

de Minton Nascimento e Caetano Veloso
musica inspirada no conto "A terceira margem do Rio"
de Guimarães Rosa

Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, tristriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio viu, vi
O que niguém jamais olvida
Ouvi ouvi ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai

Fonte: http://www.lyricsmode.com/lyrics/v/veloso_caetano/a_terceira_margem_do_rio.html

Francisco





Animação feita em 2003, em xilogravura, inspirada no conto "A Terceira Margem do Rio" de João Guimarães Rosa. Um filme de Tereza Moura. Trilha sonora André Salles-Coelho. As gravuras foram entalhadas em cedro e impressas sobre papel, sendo que para este filme, foram feitas mais de 1500 impressões.

Rosa: Sertão em toda parte

Excertos de Guimarães Rosa















Ilustração de Djanira para Campo Geral

"O mineiro é velhíssimo. Tem a memória longa.Ele escorrega para cima. Só quer o essencial , não as cascas. Sempre freqüentado pelo enigma, retalha o enigma em pedacinhos ...Sempre assim foi. Ares e modos. Assim seja. Minas sem mar. Minas em mim."

"Minas é uma montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência , a verticalidade esconsa, o esforço estático: a suspensa região - que se escala ".

"Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida". (Grande Sertão: Veredas)

"Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço".

"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?' (Campo Geral)


"Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim."



Guimarães Rosa

SERTÃO

Guimarães Rosa

"O senhor vê aonde é o sertão? (...)".
"O senhor tolere: isto é o sertão.
Uns querem que não seja: que situado
Sertão é por os campos-gerais a fora a dentro,
eles dizem, fim de rumo,
terras altas, demais do Urucuia. (...).
Lugar sertão se divulga:
é onde os pastos carecem de fechos;
onde um pode torar dez, quinze léguas,
sem topar com casa de morador;
e onde criminoso vive seu cristo-jesus,
arredado do arrocho de autoridade".
"(...). Sertão é o sozinho. (...)".
"(...). Jagunço é o Sertão. (...).
O Sertão tem medo de tudo (...)".
"O senhor sabe: Sertão é onde manda quem é forte (...).
Deus mesmo, quando vier, que venha armado!".
".... o Sertão se sabe só por alto (...)".
"(...). Sertão velho de idades. (...).
Sertão que se alteia e se abaixa (...)".
"(...). Sertão é onde o pensamento da gente
se forma mais forte do que o poder do lugar (...)".
"‘ – O senhor não é do Sertão. Não é da terra...’".
"...no centro do Sertão, o que é doideira às vezes

pode ser a razão mais certa e de mais juízo! (...).
Sertão é isto: o senhor empurra para trás,
mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.
Sertão é quando menos se espera (...) ".
"O Sertão aceita todos os nomes:
Aqui é o Gerais,
lá é o Chapadão, lá acolá é a Caatinga (...)".
" – O sertão é bom.
Tudo aqui é perdido.
Tudo aqui é achado (...)’".
"No Sertão até enterro simples é festa".
"(...). Sertão foi feito é para ser sempre assim:
alegrias (...)".
"Ah, tempo de jagunço tinha mesmo que acabar,
cidade acaba com o Sertão.
Acaba?".
"... só se sai do Sertão é tomando conta dele a dentro...".
"O Sertão não tem janelas nem portas. (...);
O Sertão está em toda parte,(...);
o Sertão é do tamanho do mundo, (...).
Sertão: é dentro da gente".

Museu Casa de Guimarães Rosa - Cordisbugo/MG

O Museu Casa Guimarães Rosa surgiu em 30 de março de 1974, entre dois fatos distintos, fundamentais para a sua inauguração. O primeiro deles: o inesperado falecimento do escritor em 19 de novembro de 1967, três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Intelectuais e amigos apelaram a fim de que fossem tomadas providências para homenageá-lo e também para preservar a casa onde nascera e passara a infância em Cordisburgo. O segundo: a criação do Iepha-MG, em 30 de setembro de 1971, que materializava o sonho preservacionista vigorante à época no Estado.












Museu Casa de Guimarães Rosa - Cordisbugo/MG

Concebido como centro de referência da vida e da obra de Guimarães Rosa e como núcleo de informações, estudos pesquisa e lazer, o museu sofreu naquela época substancial reestruturação, com a criação e o aparelhamento de um Setor de Documentação e a execução de um novo projeto museográfico, com a reconstituição da venda do Sr. Floduardo Pinto Rosa, pai do escritor – conhecida como "venda do seu Fulô", onde Guimarães Rosa vivenciou episódios que marcaram profundamente sua vida.Passados hoje quase vinte anos de reestruturação, a Superintendência de Museus encontra-se envolvida com o Projeto de Revitalização do Museu Casa Guimarães Rosa. Trata-se de, neste momento, através da busca de alternativas museológicas, propor uma nova conceituação para o museu, definindo vetores culturais capazes de adaptá-lo às demandas contemporâneas. O propósito é situar a instituição numa perspectiva mais ampla de atuação, colocando o homem integrado ao ambiente natural e cultural.
O PrédioNo final do século XIX, princípio do século XX, era comum, sobretudo nas cidades do interior mineiro, a utilização das casas como residência particular e estabelecimento comercial.Assim foi construída a casa em que João Guimarães Rosa passou a infância e onde o pai do escritor, Floduardo Pinto Rosa, possuía a sua venda, tipicamente mineira.


Histórico


Localizada na Rua Padre João, esquina com a Travessa Guimarães Rosa, e de arquitetura modesta, a casa apresenta varanda lateral, cunhais de madeira pintada, paredes de adobe, cobertura em duas águas, vãos internos em linhas retas e acabamento singelo.A lojinha do seu Fulô funcionou até em 1923, conforme informação do comerciante Elpídio Meirelles de Avellar, que o sucedeu em Cordisburgo. O imóvel passou, em seguida, a vários donos, atendendo a diversas funções: foi bar e casa de jogos. Em 1971 foi doado pelo Estado ao recém-criado Iepha-MG, depois de ter sido comprado das mãos de seu último proprietário, Idelfonso Rodrigues Costa.


Fonte: http://www.cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=3&cat=45&con=394

sexta-feira, 13 de junho de 2008














Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.

Grande Sertão: Veredas


"Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa"




"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando."








UM CHAMADO JOÃO

de Carlos Drummond de Andrade

João era fabulista?
Fabuloso?
fábula?
Sertão mística disparando.
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
pra disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multivoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
cm misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia
nome, cura, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de céus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelado
de precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria?
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do principio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.


Fonte: http://www.netliteratura.hpg.ig.com.br/resumos/sagarana.txt


Guimarães por Guimarães





















"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser
um crocodilo vivendo no rio São Francisco.
Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."

"Que nasci no ano de 1908, você já sabe
(...) Minha biografia literária não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não tem tempo, não tem princípio nem fim. E meus livros são aventuras, para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito, o momento não conta. Vou-lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo repito o que já vivi antes (...) Como escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filosófico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No sertão, o homem é o 'eu' que ainda não encontrou um 'tu'."

Fonte: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/meninadela