sábado, 9 de agosto de 2008

AS MARGENS DA ALEGRIA - WORKSHOP DE RELEITURA EM CORDISBURGO


AS MARGENS DA ALEGRIA

Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele, justinhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O vôo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se–certo como o ato de respirar–o de fugir para o espaço em branco. O Menino.

E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. Solícito de bem-humorado, o Tio ensinava-lhe como era reclinável o assento–bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o móvel mundo. Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois–assim insetos? Voavam supremamenete. O Menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso. Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a Tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o Tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem. Chegavam.


in Primeiras Estórias (João Guimarães Rosa), José Olympio Editora, 12ª edição, 1981.

SUPLEMENTO LITERÁRIO ESPECIAL - 100 ANOS DE GUIMARÃES ROSA - JUNHO DE 2008




A edição especial de junho do Suplemento Literário homenageia o centenário de João Guimarães Rosa, escritor que trabalha a linguagem para aproximá-la da vida, sempre na “margem da palavra”, na “asa da palavra”, como diz a letra da canção A terceira margem do rio, de Caetano Veloso e Milton Nascimento.
De palavra, Rosa sabe tudo, e das andanças pelo Pantanal com Manoel de Barros, esta edição traz o relato de um belo e literário encontro entre os dois grandes escritores. O Suplemento Literário procurou extrair da obra rosiana a sua lição maior: o trabalho infinito da arte: criar.
Por isso, essa edição especial priorizou o diálogo de artistas e pesquisadores contemporâneos com o texto do escritor mineiro. Em “Mutum: notas de filmagem”, Sandra Kogut relata um pouco do processo de criação fílmica de Mutum, película nascida de Campo Geral, novela que conta a estória do menino Miguilim. Em seguida há uma conversa com a cineasta, em que ela comenta suas opções pelo silêncio e pelo caminho sensorial, intuitivo, para se aproximar mais da obra rosiana.
Alexandre Amaro escreve sobre a referida canção de Caetano e Milton. Ele aborda a relação da letra da música com o conto homônimo de Guimarães, salientando que a canção potencializa e transcende imagens e sensações inerentes à escrita rosiana. A terceira margem do rio é ainda a matéria-prima do grupo de artistas-gravadores Aflecha, que fabricam e ilustram um mini-livro artesanal com o conto, comentado poeticamente pelo escritor Paulinho Assunção.
Guilherme Trielli Ribeiro faz uma leitura sobre a instalação Grande sertão: veredas, realizada por Bia Lessa – montada em 2006 no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo e em 2007, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Segundo Guilherme, Bia faz o visitante entrar no avesso da obra, no livro em construção, tal como Alice (a famosa personagem de Lewis Carroll) na casa de espelhos.
Adriana Melo escreve “O homem da caderneta”, um jogo com alguns personagens de Rosa que, munidos de caderneta, punham-se a anotar o nome das coisas: pássaros, rios, insetos. No conto de Adriana, o escritor é que é escrito como personagem “caligrafador de belezas”.
A cineasta Marília Rocha comenta sobre a realização de seu filme Aboio, de 2005, que parte do conto O burrinho pedrês, da obra Sagarana, para tentar trabalhar a linguagem cinematográfica de forma não cerebral, experimentando a densidade das imagens e dos sons.
“Uma nova qualidade de homem” apresenta fragmentos das conversas de Paulo de Andrade com Leonardo Ventura e Raquel Tamoio – atores do Projeto Casa Laboratório – e Cacá Carvalho, diretor do espetáculo O homem provisório, peça que tem o Grande sertão: veredas como ponto de partida. O trabalho de adaptação, o fascínio pela leitura, o diálogo com a cultura do sertão pernambucano, entre outras questões, são comentados pelos artistas.
Maria Inês de Almeida escreve “Cem memórias de paisagem”, relato nascido da experiência de leitura de dois textos de Guimarães Rosa – Uns índios (sua fala) e Meu tio o iauaretê com os índios Xacriabá, de Minas Gerais. Maria Angélica Melendi comenta sete gravuras do artista plástico Arlindo Daibert, da série Grande sertão: veredas, publicada no livro Imagens do Grande Sertão.O diário de guerra de Guimarães Rosa, do período em que serviu como cônsul-adjunto no Consulado Brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942, é o tema do ensaio de Eneida Maria de Souza.
Já Marli Fantini Scarpelli traça uma pequena biografia do escritor. Esta edição ainda conta com ilustrações de Letícia Grandinetti, Roberto Bethônico e capa de Bruno Vasconcelos, criações inspiradas no conto Jardim fechado, de Guimarães Rosa.

SUPLEMENTO LITERÁRIO ESPECIAL GUIMARÃES ROSA - MAIO 2006

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